No fim da tarde do último dia 5, o sociólogo Leonardo Pinho, ex-diretor do Ministério dos Direitos Humanos comandado pelo agora ex-ministro Silvio Almeida, dirigia na Rodovia dos Bandeirantes, indo para sua casa na capital paulista. Pinho voltava da cidade de Valinhos (SP), onde é candidato a prefeito pelo PT, e, fora a incômoda fumaça das queimadas, tinha naquela quinta-feira mais um dia normal da rotina de campanha. Às 18h01, o visor do carro, que exibia a sintonia na rádio 105.1 FM de Jundiaí, deu lugar ao aviso de uma chamada. A ligação, contou Pinho em entrevista à coluna, vinha de um número desconhecido. Segundo ele, era uma voz masculina, em tom de ameaça: “Não vou aceitar. O complô vai ser desmantelado. Para de falar. O Silvio é sócio de grandes escritórios de advocacia. É sócio do Walfrido Warde”. E a ligação foi encerrada.
Léo Pinho pediu demissão do Ministério dos Direitos Humanos após, de acordo com ele, ter sido vítima de uma série de episódios de assédio moral por parte de Silvio Almeida ao longo de 2023. O telefonema da quinta-feira passada ocorreu menos de uma hora depois de a coluna publicar a reportagem que revelou as acusações de assédio sexual contra Almeida, fruto de investigação iniciada em junho e com a qual, sob anonimato, Pinho havia colaborado.
Durante a apuração sobre os relatos de assédio contra Almeida, a coluna procurou Pinho, bem como diversos funcionários atuais e antigos da gestão de Silvio Almeida. Muitos se recusaram a falar com a reportagem, publicamente ou sob anonimato. Foi o caso dele, que, agora, após o telefonema de ameaça que afirma ter recebido, aceitou dar uma entrevista e contar sua versão sobre tudo o que passou com Silvio Almeida no Ministério dos Direitos Humanos.
Os dois haviam se aproximado durante a transição de governo, quando Pinho foi convidado por Silvio Almeida para assumir a Diretoria de Promoção dos Direitos da População em Situação de Rua. Ao longo de 2023, a boa relação foi dando lugar a conversas mais tensas no gabinete do então ministro, sempre que Pinho contrariava alguma prática de Almeida. A situação escalou a ponto de, segundo ele, Almeida ter passado a gritar, xingar e bater no próprio peito e na mesa enquanto se dirigia a seu subordinado.
Pinho conta que um dos dias em que Almeida teria tido uma reação irada foi quando, numa reunião em outubro de 2023, levou ao ministro queixas que ouvia no Ministério da Igualdade Racial, com quem tinha reuniões de trabalho, sobre a relação ruim entre o ministro e Anielle Franco.
“O ministro ficou descontrolado, transtornado, quando mencionei a Anielle. Me falou: ‘Você está insinuando o quê? Sou ministro de Estado, você é um merda’. Fiquei sem entender e tive medo de ele me agredir.”
Cinco meses antes, em maio daquele ano, segundo relato de Anielle a outros ministros, Silvio Almeida teria passado a mão em sua perna por baixo da mesa, em uma reunião no Ministério da Igualdade Racial.
Na entrevista, Pinho também citou outros supostos episódios de assédio moral de Silvio Almeida: “O ministro me chamou para o gabinete dele, me disse que eu era incompetente e uma vergonha. Deu murros na mesa, bateu no próprio peito, foi agressivo, gritou, levantou da cadeira dele e veio do meu lado, a uns 20 centímetros, para me intimidar. Pensei que ele ia me agredir, me dar um soco”.
Durante a apuração do suposto assédio sexual de Silvio Almeida contra Anielle Franco, a coluna procurou o ex-diretor do Ministério dos Direitos Humanos. Pinho vinha se esquivando sistematicamente de comentar o assunto. Depois da ligação ameaçadora na semana passada, contudo, disse ter tomado coragem para vir a público, como um modo de se proteger.
Procurado, Silvio Almeida não respondeu. O espaço segue aberto a eventuais manifestações.
Governo de transição — o começo da convivência
“Eu e Silvio Almeida fizemos parte do governo de transição, no fim de 2022, após a eleição de Lula. Eu achava que ele representava uma mudança no quadro político. Eu criticava o governo por ter poucas pessoas negras, poucas mulheres. Organizei eventos públicos para o Silvio com movimentos sociais, inclusive com a Symmy Larrat, que se tornou secretária nacional dos Direitos das Pessoas LGBTQIA+. O Silvio era uma referência importante na intelectualidade, na discussão de racismo estrutural, mas nunca tinha sido gestor público ou se aproximado dos movimentos sociais. Quando ele se tornou ministro, eu havia sido reeleito como presidente do Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH), ligado ao ministério. Ele me convidou para criar e comandar a Diretoria Promoção dos Direitos da População em Situação de Rua. Fui diretor e representei o ministério no CNDH de janeiro a dezembro de 2023.”
Primeira reunião individual — “Você é meu funcionário, vai fazer”
“No meio de 2023, o ministro me chamou para o gabinete dele. Me pediu para eu gravar escondido reuniões internas do Conselho Nacional de Direitos Humanos, com pessoas de outros ministérios. Ele queria saber os detalhes da elaboração das pautas das reuniões e também das críticas ao ministério. Eu respondi que o CNDH não era de governo, mas de Estado, e que não gravaria ninguém. ‘Você é meu funcionário, vai fazer’, disse. Respondi: ‘Não vou fazer, e você tem um instrumento simples, a exoneração, se achar que estou deixando a desejar’. Aí ele desconversou. Isso me soou um alerta. Ele é PhD em direito, professor, sabe de lei, sabia o que estava fazendo. A partir daí, isso foi se avolumando. Comecei a perceber que o que ele queria não era uma relação de gestor público, mas uma fidelidade de gângster para defendê-lo a todo custo, algo pessoal. E o Estado é impessoal.”
Segunda reunião individual — “Pensei que ele ia me dar um soco”
“Em julho e agosto, quando o STF deu prazo para o governo apresentar políticas públicas à população em situação de rua, fui informado de que a minha diretoria, que cuida especificamente disso, não atuaria por decisão do ministro. É algo que não faz sentido. O corpo técnico tem de subsidiar as decisões da área. Isso em qualquer ministério. Interpretei como uma retaliação por eu não ter atendido aos pedidos dele para gravar reuniões ilegalmente. Começaram a chegar pedidos de produção de pareceres em prazos impossíveis de cumprir. Tinha um sentido de tentar mostrar que a equipe, composta por funcionários de carreira, era incompetente. Começaram a tomar decisões sem os pareceres técnicos, o que não pode acontecer. Minha equipe decidiu não assinar nada que não passasse pelo fluxo normal. Não éramos mais chamados para reuniões.
O ministro me chamou para o gabinete dele, me disse que eu era incompetente e uma vergonha. Deu murros na mesa, bateu no próprio peito, foi agressivo, gritou, levantou da cadeira dele e veio do meu lado, a uns 20 centímetros, para me intimidar. Pensei que ele ia me agredir, me dar um soco. ‘Você não vai ficar nesse plano da população de rua, você não vai aparecer nem nas entrelinhas, a diretoria acabou’, me disse. Eu fiquei em choque, atônito, nunca tinha visto isso. Fiquei me perguntando como eu lidaria com isso. Meu grande objetivo era concluir o plano Ruas Visíveis, eu trabalhava nisso desde antes do governo Lula, era o grande sonho da minha vida.”
Primeira reunião em grupo — “A sorte é que o conselheiro não está aqui”
“Ainda no segundo semestre, o ministro soube que havia sido criticado duramente em uma reunião plenária do CNDH. Conselheiros disseram que ele estava visitando presídios sem avisar o conselho e o Mecanismo Nacional de Proteção e Combate à Tortura, que tem peritos. Um conselheiro questionou se o ministro estava indo tomar cafezinho com o diretor do presídio, porque não tinha poder para reformar o presídio ou obter um resultado prático em caso de violações. E o CNDH também estava cobrando orçamento do ministério, o que é normal.
O ministro entendeu essa crítica como a morte. Chamou uma reunião com a Mesa Diretora do CNDH no gabinete dele. Aí ele repetiu em grupo o que havia feito comigo em particular, mas também com esses outros conselheiros. Ele permaneceu na cadeira, mas deu soco na mesa, bateu no próprio peito e disse: ‘A sorte é que esse conselheiro não está aqui ou não falou isso na minha frente. Não tem coragem de dizer isso na minha cara. Vocês pensam que eu sou o quê? Eu sou ministro de Estado’, dando socos na mesa e gritando.”
Terceira reunião individual — “Transtornado” com menção a Anielle Franco
“Por volta de outubro, ele me chamou ao gabinete dele e me pediu para gravar reuniões com a minha equipe, que tinha se recusado a assinar documentos fora do fluxo do ministério. Também pediu para eu gravar integrantes do Ciamp [Comitê Intersetorial de Acompanhamento e Monitoramento da Política Nacional para a População em Situação de Rua], que haviam criticado o plano do ministério por falta de transparência. Eu falei ‘não’. Foi a mesma cena: ele se levantou da mesa, xingou e deu socos na mesa. Me disse que os meus dias estavam contados.
Nessa conversa, eu disse: ‘A gente também precisa melhorar a relação com os ministérios, com a Anielle’, porque eu havia recebido relatos de dificuldade na relação do Silvio com a Anielle. Imaginei que era assédio moral, por causa da subordinação orçamentária da Igualdade Racial aos Direitos Humanos. A Anielle dependia do Silvio em termos de orçamento para tudo, até para passagens aéreas.
Mas o ministro ficou descontrolado, transtornado, quando mencionei a Anielle. Me falou: ‘Você está insinuando o quê? Sou ministro de Estado, você é um merda’. Fiquei sem entender e tive medo de ele me agredir. Ele também disse, em relação ao meu trabalho no ministério: ‘Eu vou acabar com a sua vida, você não vai mais existir’. Saí da reunião, liguei para minha esposa e chorei. Tive problemas de saúde por causa dessa situação, pressão alta, diabetes, ganhei peso. Eu já estava decepcionado com ele, mas ali fiquei com medo. Era uma pessoa de envergadura, que foi sócio de escritórios importantes de advocacia.”
Ligação de suposta jornalista
“Alguns dias depois dessa conversa, recebi uma ligação de um número desconhecido, de Brasília, de uma mulher dizendo ser jornalista da revista Época. Achei estranho, porque a revista não existia mais. Essa mulher me perguntou, em reserva, se eu estava atuando para derrubar o ministro. Não respondi sobre isso e gravei a ligação. Comuniquei o chefe da Comunicação do ministério e não soube de nenhuma providência. Provavelmente deveriam estar gravando para ver se eu respondia algo. Foi grave.”
Relatos sobre assédio de Silvio Almeida contra Anielle Franco
“No fim do ano, quando eu estava prestes a pedir demissão de fato, fiquei sabendo da possibilidade de assédio sexual do ministro Silvio Almeida contra a ministra Anielle Franco. Até então, pensava que era assédio moral, como eu sofri. Soube que o assunto começou a ser apurado dentro do governo. Foi aí que eu liguei as coisas e me lembrei da reação dele quando mencionei a necessidade de melhorar a relação com a Anielle naquela reunião. Eu achava que o próprio governo tinha de apurar determinados assuntos. Saí do governo, tirei férias, cuidei da minha saúde e comecei a focar a minha pré-campanha para prefeito de Valinhos pelo PT. Minha esposa passou em um concurso da USP [Universidade de São Paulo], então ela também se mudaria de Brasília para São Paulo.”
Ligação com ameaça
“Eu estava dirigindo de Valinhos a São Paulo, na Rodovia Bandeirantes, no começo da noite da quinta-feira (5/9), quando recebi por viva-voz a ligação de um número desconhecido. Um homem disse que não ia aceitar, que esse complô ia ser desmantelado, que era para eu parar de falar. Disse que o Silvio era sócio de grandes escritórios de advocacia, do Walfrido Warde [famoso advogado, principal sócio de uma grande banca de advocacia e sócio de Almeida na advocacia antes de o ministro entrar para o governo Lula]. Interpretei que, se eu falasse qualquer coisa, seria processado. Não faço ideia de quem seja. Ficou claro para mim que é uma intimidação pela via jurídica. Eu nem tenho advogado. Para mim, foi a gota d’água. Estou dando esta entrevista para me proteger. Estou com medo.
‘Não vou aceitar. O complô vai ser desmantelado. Para de falar. O Silvio é sócio de grandes escritórios de advocacia. É sócio do Walfrido Warde’, disse a voz.”
Decepção — “Estou com medo”
“O mínimo que ele fez comigo no ministério é assédio moral. Eu vejo até nomes piores do que ele fez, pode ser ameaça. Eu li os manuais de assédio moral do Ministério Público do Trabalho, de sindicatos. Está tudo lá.
No governo Bolsonaro, tive reuniões com a Damares Alves, então ministra de Direitos Humanos, e com o general Eduardo Pazuello, então ministro da Saúde. Nunca fizeram algo parecido comigo. A relação tinha uma institucionalidade mínima. Imagina ver isso do Silvio, alguém que você ajudou a construir para o cargo, alguém por que você se dedicou, você acreditou. É doloroso, pessoalmente falando. É um baque. Eu ajudei o Silvio a chegar ao ministério, defendi o projeto. Sei que não deveria, mas estou até me sentindo corresponsável. 2023 seria o ano do sonho, de voltar a algum grau de civilidade no Brasil. E aí eu recebo a incivilidade. Apenas estou relatando o que passei, o que eu vi. Sinceramente, estou com medo.”
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